As cruéis mitocôndrias

 

Há coisas que a gente aprende na escola e não entende para que aquilo vai servir, se é que vai servir um dia. Na minha sétima classe, eu tinha um colega que não admitia aprender o nome dos trocentos países da África. Ele nunca iria para lá mesmo, ora! E, além do mais, aquele povo adora trocar o nome do país, a gente aprende hoje e amanhã já erra na prova.

Eu, pelo contrário, sempre adorei Geografia e sabia de cor toso os países e capitai, O que nunca me entrou na cabeça foi a importância de aprender o nome de tantos protozoários, bactérias, fungos, vírus e outros causadores de doenças. Na época eu estava a curtir o meu primeiro amor platónico e só queria aprender a explicação para o meu coração acelerado e a minha dor de cotovelo. A professora de Ciências não passava nem perto de resolver esse problema.

Quase no final da adolescência, tive a brilhante ideia de montar uma banda de rock chamada Giardia Lamblia e seus Vacúolos Contrácteis. Maravilha: eu tinha descoberto finalmente a utilidade das aulas de Ciências. Era um nome engraçado e de sonoridade moderna, bem na linha das bandas de rock brasileiro da época: Kid Abelha e Seus Abóboras Selvagens, João Penca e Seus Miquinhos Amestrados.

Na época eu ficava a ver umas bandas de heavy metal com os nomes mais macabros do mundo: Overdose, Sepultura, Gangrena, às vezes em inglês tipo Witch Hammer, Overkill, Motherfuckers, tudo quanto é podreira. E pensava: já que é para pôr nome de doença, aleijão e morte, não custa nada acrescentar um pouquinho de bom humor. Acredito que a minha Giardia Lamblia tinha tudo para virar uma febre. Pena que eu não me animei a aprender guitarra, nem bateria, nem nada, e a banda morreu ali mesmo, no nome.

Acabei entrando para a faculdade de jornalismo e foi ali que eu descobri mais uma utilidade para tais aulas de Ciências. Um dia, eu e dois colegas, cada um mais gozador do que o outro, fomos ao Museu da Inconfidência, em Ouro Preto, e a escadaria principal estava em reforma. Os visitantes tinham de recorrer a uma escadinha de madeira bem capenga, num canto escuro.

Quando a gente estava descendo para ir embora, notamos um garotinho de uns oito anos olhando para aquela escada e morrendo de medo de subir. Nessa hora um dos meus amigos, o Mauro, resolveu sacanear o menino:

- Se eu fosse você não subia, não.

- Porquê? - o menininho até tremia.

 

 

- Lá em cima está cheio de mitocôndria!

Coitado do menino. Arregalou uns olhos deste tamanho, engoliu seco, não sabia o que fazer.

- E isso morde? -  ele ainda teve voz para perguntar.

E o Mauro – até hoje não sei como ele conseguiu lembrar-se dessa aula tantos anos depois – teve a crueldade de responder:

- Morder não morde, não.  Mas sintetiza ATP.

Pronto: o menino saiu em disparada pela praça de Ouro Preto, berrando «mamã, mamã?».

Só muitos anos depois, na aula de ciências, o pobre menino deve ter percebido toda a sacanagem daquele dia.

Até então, aposto que ele teve mil pesadelos, com as cruéis mitocôndrias sintetizando todos os ATPs do deu cérebro indefeso.

 

Leo Cunha, In Manual de desculpas esfarrapadas

(Adaptado)


Última alteração: sexta-feira, 13 de junho de 2025 às 07:34